sexta-feira, 25 de abril de 2014

O PT e as Diretas Já: 30 anos da derrota popular.


Gelsom Rozentino de Almeida
Procientista FAPERJ/UERJ
Professor Associado PPGHS/UERJ
Coordenador do TEMPO
GT História e Marxismo - ANPUH


            Em dezembro de 1983, apesar da iniciativa tomada na campanha, a Comissão Executiva Nacional do PT reconhecia que ainda havia vários setores do partido que tinham dúvidas sobre a importância da luta por eleições diretas. Setores que acreditavam que o povo não se interessaria por eleições, mas por emprego, terra e comida. Os dirigentes do partido, entretanto, decidiram investir na campanha pelas eleições diretas, considerando-as como condição para a conquista do governo e, em conseqüência, para a mudança das políticas econômica e social.
            A Executiva buscava, antes mesmo da aprovação da proposta na Convenção em 1984, aumentar a participação do PT na campanha – “questão de honra para a sociedade brasileira “[1] – através da criação de comitês suprapartidários em bairros, cidades, sindicatos, associações; comícios-relâmpagos em pontos de grande concentração e grandes atos públicos unitários; barracas de propaganda com material de divulgação. O PT, ou melhor, a direção do PT, não aceitava o lançamento de nenhum nome para a Presidência, pois poderia implicar na divisão entre os diferentes partidos. E também era contra a proposta aventada por alguns, como o Governador Leonel Brizola (RJ), em favor de um mandato-tampão ou prorrogação do governo do General Figueiredo.
            A direção do PT formulou na reunião da Executiva Nacional de 14 de janeiro de 1983 a sua justificativa para o estabelecimento da luta por eleições diretas como prioritária naquele momento. Tratava-se também de afastar os temores internos de que o partido estaria se “rendendo”  e adotando uma postura liberal diante dos grandes impasses vividos pelo país. A campanha por diretas não seria uma luta isolada, ou um fim em si mesma, mas estaria vinculada a lutas tidas como prioritárias para o partido.
“(...) A direção do partido não vê as eleições diretas como uma panacéia, uma mágica capaz de salvar o país do naufrágio econômico e social que lhe foi imposto pelo regime militar. Não. Para o PT a conquista das eleições diretas é apenas um momento na dinâmica das lutas pela reorganização completa da sociedade brasileira. Porém, seria uma demonstração de cegueira política inadmissível não enxergar que essa campanha – e a realização propriamente dita de um pleito para a escolha de um novo governo – constituem dois momentos extremamente favoráveis para que os trabalhadores se articulem nacional mente [e] ganhem mais espaço para suas reivindicações.
“Ou seja, o PT saiu na frente na luta pelas diretas porque a escolha democrática dos governantes é um princípio do qual o partido não abre mãos. [sic] E também porque sua direção entende que essa bandeira cria um terreno fértil para a agitação de três lutas prioritárias dos trabalhadores: 1. a mudança radical da política econômica, de modo a atender os interesses das grandes massas; 2. a conquista plena das liberdades políticas, em particular a liberdade de organização sindical e partidária e o fim da Lei de Segurança Nacional; e 3. a  implantação de uma reforma agrária conseqüente que atenda aos interesses dos trabalhadores do campo e da cidade.
“Fica claro, portanto, que para o PT a campanha pelas diretas não pode se esgotar com a votação da Emenda Dante de Oliveira (dia 11 de abril), quando o Congresso decidirá se o pleito será democrático ou não. Se a emenda for aprovada, será preciso ir às ruas para garantir a realização das eleições. E se ela for rejeitada, será preciso continuar nas ruas com mais força ainda, para pressionar o regime e derrubar o veto.”[2]
            A coordenação da atuação petista na campanha ficou ao cargo de Luís Eduardo Greenhalg (coordenador), Francisco Weffort, Lula, Airton Soares, Bete Mendes, Sidney Lianza e Jacó Bittar. A tarefa dessa comissão era agitar o partido e incentivar a formação de comitês suprapartidários por todo o país. A idéia era realizar um “Dia Nacional de Luta pelas Diretas”, comícios, manifestações, por todas as categorias e estados, preparar uma Greve Geral juntamente com a CUT. Pretendia-se ir além da defesa do direito ao voto para presidente, articulando a reivindicação por eleições diretas com “trabalho, terra e liberdade” (o slogam do PT em 1982) e tornando a campanha um movimento de massas. Se possível, culminando com a organização e mobilização dessas massas em caráter permanente.
            Em meio a conjuntura da campanha das Diretas Já, ocorria a disputa pelo poder no partido, tendo como foco a atuação e o fortalecimento do partido junto aos movimentos sociais e lutas populares. Quatro teses foram apresentadas no III Encontro Nacional do PT em 1984: a primeira encabeçada por Lula (Por um PT de Massa), que foi escolhida como tese-guia, a Segunda por Virgílio Guimarães (O PT na direção da luta), a terceira por José Genoíno (Pelo fim do regime militar), e a quarta por Bruno Maranhão (Projeto de Ruptura Popular).[3]
            A primeira proposta era assinada por Lula, Jacó Bittar, Francisco Weffort, Luís Eduardo Greenhalgh, Djalma Bom, Devanir, José Dirceu, Perseu Abramo, Hélio Bicudo, Luís Gushiken (SP); Luís Dulci e Mares Guia (MG); Apolônio de Carvalho (RJ); Perly Cipriano (ES); Mescoloto (SC); Neumar (RO); Athos (GO); e outros. Propunha-se enfatizar os seguintes pontos:
-          fortalecer os núcleos, concedendo poder deliberativo e cobrando sua estreita ligação com os movimentos de massa;
-          melhorar a formação política dos filiados, através de programas sistemáticos e da reflexão conjunta sobre as experiências de luta;
-          formular um programa de atuação parlamentar que, sem substituir a organização e a luta dos trabalhadores, aproveite ao máximo as possibilidades do parlamento;
-          elaborar planos de finanças eficazes e responsabilizar todos – e não apenas tesoureiros e órgãos de direção – pelo seu êxito;
-          intensificar a atuação nos movimentos popular e sindical, traçando políticas claras e definidas, mas sempre respeitando a sua autonomia;
-          exigir de todos os petistas que se submetam às diretrizes e instâncias partidárias, e não tentem confundir o PT com uma frente nem passar posições alheias ao partido.[4]
Conforme essa proposta, o objetivo prioritário do partido, naquele momento, seria impulsionar o movimento de massa para apressar o fim do regime militar e conquistar a democracia. O PT, ao lado dos movimentos popular e sindical, lutaria contra  a política econômica, pelo rompimento dos acordos com o FMI, pela supressão do pagamento da dívida externa e por uma reforma agrária sob controle dos trabalhadores. Contra o regime militar, lutaria por eleições livres e diretas, sem restrições, não por razões táticas (também) mas por uma questão de princípio democrático. Além de condenar o Colégio Eleitoral, o PT combateria qualquer participação no processo de eleições indiretas e qualquer conciliação com o regime. Defenderia eleições em dois turnos e só definiria candidatura em convenção nacional extraordinária, após a conquista das diretas. Nas lutas em que se posicionasse ao lado de outras forças, o PT não deveria perder sua identidade nem sua independência políticas. Suas propostas deveriam ser levadas às bases sociais e nelas buscar apoios, sem  acordos de cúpula e de gabinete. O PT deveria apoiar o desdobramento da campanha das diretas em grandes jornadas de lutas de massa contra o regime, inclusive a greve geral (como proposta da CUT), e aprofundar o debate interno sobre a Assembléia Nacional Constituinte.
Afirmando que a meta final do PT é o socialismo, indicava-se a questão do poder para os trabalhadores:
“(...) Lutar por eleições significa que queremos os trabalhadores nos governos. Mas governo é apenas uma parte do poder, que exprime as relações de dominação econômica, social, política e cultural existentes na sociedade.
“Para mudar o caráter do Estado, e com isso, contribuir para a transformação da sociedade, queremos, além do governo, também o poder. Mas a oportunidade da tomada do poder ainda não está colocada de forma clara e consciente para a totalidade da classe trabalhadora. Além disso, poder não apenas se toma, mas também se constrói. Portanto, devemos fortalecer a capacidade de organização e de luta dos trabalhadores.
“Para conquistar os governos – e também o poder – precisamos ter propostas concretas. Assumimos, pois, como nossas, as propostas de governo contidas nos documentos básicos do PT, principalmente, as do texto intitulado “Terra, Trabalho e Liberdade”.(...)”[5]
            A segunda proposta apresentada era assinada por membros da Democracia Socialista (Jornal Em Tempo), de cunho trotskista, e outros militantes próximos, como Virgílio Guimarães e Aloísio Marques (MG); Raul Pont e Nelson Sá (RS); Joaquim Soriano e José Emídio de Souza (RJ); Flávio Andrade e Keiji Kanashiro (SP); Ronaldo Barbosa Ferreira (PB); e outros. Para os autores, a mais grave crise já vivida pela sociedade brasileira ofereceria perigos, mas, ao mesmo tempo, estaria repleta de possibilidades para as classes trabalhadoras. Seria necessário ousar, armar o partido ideológica, política e organicamente, colocando o PT à altura dos grandes desafios.
            Em seu programa defendiam o fim da ditadura militar, entendida como conquista “das mais amplas liberdades democráticas”, como o primeiro passo para o atendimento das reivindicações do povo. Diante da crise, o PT deveria se constituir em uma alternativa operária e popular, participando de acordos pontuais com outros setores da oposição. Mas, de forma alguma, deveria participar de alianças globais com as classes dominantes. A tática seria centrada em mobilizacões de massa, amplas e politizadas, em torno de uma plataforma (quase que consensual no partido): 1) Por eleições livres e diretas já, pelo fim do regime militar, por uma constituinte livre e soberana; 2) Pelo fim da política econômica de arrocho e desemprego; 3) Pelo rompimento dos acordos com o FMI e com os banqueiros internacionais; 4) Pela reforma agrária. A disputa da hegemonia com os liberais, no bojo da campanha por eleições diretas, requereria, além da medidas citadas, o lançamento de uma candidatura própria das forças operárias e populares. O PT, através de Lula, é quem possuiria o nome de maior expressão e ressonância nesse campo. Seu lançamento, como pré-candidato, ao invés de fechar as portas para possíveis composições posteriores com estas forças, na verdade forçaria o rompimento das correntes operárias com o PMDB e o PDT. E, quanto a conquista do poder, mesmo não estando ainda na ordem do dia, o PT deveria orientar as massas num “rumo estratégico definido (...) um programa rumo ao socialismo (a Plataforma Trabalho, Terra e Liberdade, da campanha de 82)”, se assemelhando à primeira proposta.
            Mas o PT teria a tarefa imediata, porém permanente, de ser um partido de massas e dirigente:
“(...) Para se elevar à altura das tarefas políticas do momento o PT não pode mais ser apenas um partido de ‘expressão’ das lutas sociais dos trabalhadores. O partido precisa enraizar-se nas massas, conquistar centenas de milhares de reais militantes e ousar tornar-se direção da classe trabalhadora e demais setores rumo à disputa do poder político. Para isso é urgente avançar na construção orgânica do PT, criando um jornal militante, baseando o partido  em núcleos efetivos voltados para a intervenção política, implantando secretarias e linhas de ação setorial nos diversos movimentos sociais, dotando o aparato partidário de uma estável estrutura de finanças e avançando nas democracia e centralização de toda a sua militância de base e de direção.”[6]
            A terceira proposta era assinada por José Genoino Neto e Ivan Valente (SP); Paulo de Tarso Carneiro [Tarso Genro] (RS); e Cliveraldo Nunes (RJ). A luta, para estas lideranças, deveria estar concentrada contra o regime militar, combatendo a conciliação, com a construção de um oposicionismo popular diferenciado e independente, com base numa plataforma própria de ação imediata e tendo como referência a conquista do poder de Estado pelos trabalhadores em luta e o socialismo. O fortalecimento organizativo do partido seria decorrência do seu fortalecimento político.
            Com o esgotamento do regime político de 20 anos e a possibilidade de uma explosão popular, identificava-se a tendência a um novo pacto entre as elites visando promover reformas por cima. O nível  de consciência, organização e luta do movimento de massas ainda não estaria à altura do momento histórico.  Mas haveria espaço  para o seu avanço e radicalização contra o regime. A divisão do movimento sindical, embora a CUT reunisse a maioria dos setores combativos, era vista como um problema. A solução seria a convocação de um congresso unitário com indicação de uma central que reunisse, efetivamente, todo o movimento sindical.
            A plataforma para unificar politicamente o movimento de massas poderia ser sintetizada: 1) Eleições presidenciais diretas com liberdade, com o desmantelamento do SNI e demais polícias políticas, revogação da LSN, liberdade e autonomia sindical, direito de greve, liberdade partidária e eleitoral; 2) Fim dos “pacotes” de arrocho, desemprego e carestia; 3) Revogação dos acordos com o FMI e não pagamento da dívida aos banqueiros internacionais; 4) Atendimento das reivindicações imediatas dos trabalhadores rurais, com uma Reforma Agrária radical.[7]
            No III Encontro Nacional as quatro teses foram rearticuladas em duas chapas. Uma liderada por Lula, “Por um PT de massa”, representando a Articulação, e outra encabeçada por Virgílio Guimarães, com o apoio das demais tendências. A Chapa de Lula foi vitoriosa com 65,8% dos votos. A disputa interna, muitas vezes acirrada, não chegaria a paralisar o partido.
            Após a confirmação da eleição indireta do presidente da República, a análise do novo Diretório Nacional do PT, em novembro de 1984, destaca a composição em curso entre setores conservadores da oposição e representantes do regime militar para a disputa no Colégio Eleitoral:
“Consolida-se no país a tendência de a sucessão presidencial culminar no Colégio Eleitoral, hoje regulamentado graças ao acordo entre o PMDB e o PDS, apesar das tentativas de obstrução do PDT e do PT, que resistiu até o último momento. Reduzem-se, assim, praticamente a zero as chances de aprovar uma emenda de diretas-já. O quadro sucessório, portanto, apesar das grandes  manifestações da campanha pelas diretas e do saldo político que ela deixou, está definido de acordo com os interesses das classes dominantes. O PMDB, que nas eleições de 1982 já dera um grande passo à direita ao incorporar o PP, deslocou-se ainda mais para a direita quando, decidindo abandonar a campanha das diretas, uniu-se a parte do PDS na Aliança Democrática para garantir maioria no Colégio Eleitoral.
Assim transformados, os dois partidos dominantes acabaram por dar-se as mãos para, juntos, regulamentarem o Colégio e promoverem uma sucessão onde ao povo só é reservado o lugar de espectador de um jogo do qual não participa. Agora, 686 delegados do Colégio vão substituir 60 milhões de brasileiros aptos a votar eleições diretas, nas quais seguramente os candidatos seriam outros.”[8]
            Enfatizava não só o alijamento do povo no processo decisório, mas a sua “incorporação” em uma encenação anti-malufista, e não anti-ditadura, em uma ampla articulação das diversas frações da classe dominante:
“(...) Esta enorme manipulação é feita através de mobilizações populares, que, convocadas a pretexto de combater o malufismo – repudiado por toda a Nação -, servem de respaldo a uma candidatura que acolhe também elementos do malufismo e seguidores do regime de 64. É preciso combater o malufismo hoje e sempre, o que significa não manter a mística de um candidato praticamente derrotado antes mesmo da reunião do Colégio. Isto porque, ali, não se trata somente de comprar votos desse ou daquele delegado, mas antes de assegurar a continuidade do sistema militar e da exploração capitalista. Nisto, a candidatura Tancredo, que representa uma articulação das classes dominantes mais poderosa do que a de Maluf, desempenha melhor a função de proclamar mudanças sem nada mudar. (...)
Tancredo, como ele próprio declarou, é a cara nova de 64, contra a subversão, a corrupção, a repressão fora da ordem burguesa. É apoiado pelo maior bloco das classes dominantes já formado no país, sendo o preferido dos grandes empresários, dos banqueiros, das multinacionais, e de uma ala dos militares. (...)realiza, por outras vias, uma antiga aspiração do general Golbery (...) isolar setores populares e de esquerda representados também no PMDB. (...)”[9]
            Em seu manifesto, o Diretório Nacional alertava para o equívoco de avaliar o governo da “Aliança Democrática” como um governo de centro-esquerda ou que estivesse comprometido com reformas. Denunciava o compromisso com a continuidade dos elementos fundamentais da dominação burguesa no Brasil:
“(...)Tancredo não pensa em reforma agrária (afinal, como dividir as terras de seu próprio vice?); não rompe com a política do FMI (Fundo Monetário Internacional); propõe um SNI (Serviço Nacional de Informações) à paisana; mantém a LSN (Lei de Segurança Nacional); convoca os trabalhadores para a colaboração com os patrões; e, num passe de mágica, adia qualquer solução de compromisso, remetendo-as para o Congresso de 1986, que promete transformar em ‘Constituinte’.
Por isso tudo, é um grave erro político imaginar que haverá condições para, no interior do governo da Aliança Democrática, empurrar o bloco das classes dominantes em direção ao centro ou à centro-esquerda.(...)
Contra a chantagem do malufismo e o projeto de transição proposto pelas classes dominantes, o PT reafirma sua disposição de boicotar o Colégio e de não participar da votação indireta de 15 de janeiro de 1985.”[10]
            Mas o Diretório Nacional do PT não se limitou a definir o boicote ao Colégio Eleitoral. Dirigindo-se aos petistas que ainda defendiam a ida ao Colégio, dirigindo-se ao PCB, PC do B, PDT, setores populares do PMDB, e ao movimento popular de forma geral, propunha a construção de uma aliança alternativa ao bloco em torno de Tancredo:
“O PT  conclama todos os seus militantes, os setores populares, sindicatos, correntes partidárias, entidades a se contraporem ao regime autoritário e ao pacto das elites, a fim de darem um sentido à ação das oposições e à luta pela democracia. Para que esta ação se efetive, é preciso que o PT e as demais forças democráticas e populares se articulem em torno de um programa comum, abrindo caminho à participação crescente dos trabalhadores e de suas organizações no debate e nas decisões dos problemas do país. Temos que unificar nossa ação  no sentido de conformar uma plataforma comum de lutas sociais, políticas, no plano sindical, das lutas populares e do Parlamento. (...)”[11]
            Visando um maior respaldo para a posição do partido no Colégio Eleitoral, o PT realizou Encontros Municipais (entre 24 de novembro e 2 de dezembro) e Encontros Estaduais (15 e 16 de dezembro de 1984), preparatórios para o Encontro Nacional de 5 e 6 de janeiro de 1985. Havia três propostas em discussão. A primeira, que representava a posição oficial do PT, redigida por Rui Falcão (SP) por determinação da Executiva Nacional, reproduzia os termos do manifesto político do Diretório Nacional, contra a participação no Colégio Eleitoral, contra o voto em Tancredo, defendendo a organização das lutas sociais, a independência política e uma plataforma comum às forças democráticas e populares.[12]  A Segunda proposta, de Marco Aurélio Ribeiro e Airton Soares, discordava da não participação no Colégio Eleitoral, mesmo considerando que nenhuma das duas candidaturas atendiam aos interesses populares. Para os autores, tratava-se de votar contra o “fascismo”, contra o retrocesso do regime, pela garantia das conquistas obtidas arduamente até aquele momento, reagrupamento das forças progressistas e negociação de um programa de metas a partir das reivindicações dos trabalhadores.[13] A terceira proposta, assinada por Paul Singer, defendia uma negociação do PT com Tancredo Neves e as forças que o apoiavam, buscando um acordo programático que permitisse aos representantes do partido votar nele em caso de eleição indireta. O fundamental seria obter o compromisso público de Tancredo com medidas como direito de greve, autonomia e liberdade sindical, salário-desemprego, uma política salarial que assegurasse o aumento real dos salários, redução da jornada de trabalho, garantia de posse da terra aos posseiros. O resultado das negociações deveria ser apresentado em Convenção Nacional (antes da eleição), que decidiria sobre o voto ou não, ficando claro, em caso de negativa do PT a sua coerência na defesa dos interesses do povo trabalhador, e não de um “esquerdismo”.[14]
            O Diretório Nacional do PT optou por não participar do Colégio Eleitoral, denunciando o seu caráter anti-democrático e a ilegitimidade do governo eleito pelo voto indireto. O partido deveria voltar-se para a organização das lutas sociais, articulando suas demandas políticas, destacando as bandeiras de eleições para presidente e convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte.
            Nos momentos que antecederiam a posse de Tancredo Neves na Presidência da República, o Diretório Nacional do PT se manifestava pela convocação imediata de uma Assembléia Nacional Constituinte livre e soberana, democrática, de caráter unicameral e independente do Executivo e do Congresso Nacional. Já em sua convocação deveriam ser revogadas as leis de exceção, concedendo o direito de voto aos analfabetos, soldados e marinheiros, garantindo a representação de todos os partidos (mesmo os que lutavam pela legalização, os PCs). A nova Constituição poderia ser promulgada antes das eleições de 1986.[15]
            Francisco Weffort, um dos intelectuais mais influentes no PT, assinava um artigo onde resumia a análise “oficial” do partido para a conjuntura de 1985 e 1986:
“Em 1985, teremos eleições para as Capitais e para as cidades ‘de segurança nacional’. Em novembro de 1986, teremos eleições para o Congresso Nacional, Assembléias e governos estaduais. E, antes disso, já no primeiro semestre de 1986, teremos eleições para a Constituinte, se vier a prevalecer, como desejamos, a tese de uma Constituinte democrática.
1985 e 1986 serão dois anos decisivos. Para o PT, como proposta política de organização dos trabalhadores. E para toda a sociedade brasileira que luta para quebrar as amarras da ditadura e tomar o caminho da democracia.(...)
A Nova República, além de uma bela frase, é uma grande contradição. Promete mudanças institucionais mas está comprometida com o continuismo na economia. Quer ser popular ao mesmo tempo em que comprometida com uma política com uma política econômica anti-popular. Uma contradição entre economia e política que o governo tenta resolver desligando uma coisa da outra. Ou melhor, dizendo ao povo que desligue uma coisa da outra.(...)
Nós, do PT, temos as respostas. E temos, sobretudo, propostas para os trabalhadores. Nós diremos: democracia sim e desenvolvimento também. Eleições sim, greves também. Constituinte sim e luta social também. Nós diremos ao governo, mas sobretudo aos trabalhadores, que tanto quanto as eleições são um direito democrático dos cidadãos, as greves são um direito democrático dos que vivem do seu trabalho e do seu salário. Nós diremos que assim como as eleições e a Constituinte ajudam o desenvolvimento da democracia, cada reivindicação dos trabalhadores contribui para a democracia e para o crescimento de um mercado interno sem o qual nenhum desenvolvimento nacional é possível. A luta política e a luta econômica que aliancistas tentam separar, como tática para dividir os trabalhadores, nós, do PT, lutaremos para unir. E lutaremos, sobretudo, para unir a nós a maioria dos trabalhadores brasileiros que tentam manter separados.”[16]
            Em uma rápida análise sobre a fragilidade da posição do PMDB na Aliança democrática, a inesperada internação e cirurgia do presidente eleito Tancredo (que não chegaria a tomar posse) já demonstraria a verdadeira direção para a qual se encaminhava a estratégia peemedebista de poder, de forma quase “premonitória”:
“(...) E quais são os ensinamentos? Em primeiro lugar, que o PMDB errou ao julgar remota a possibilidade de José Sarney, o ex-presidente do PDS, ocupar a cadeira presidencial, assim como já errara ao julgar que os malufistas impugnariam sua indicação, obrigando a Frente Liberal a escolher um vice não partidário, como Ermírio de Moraes. Em segundo lugar, o golpe branco contra a campanha das diretas, representado pela eleição de Tancredo, e principalmente pelo tipo de ministério e de políticas por ele definidas, pode acabar evoluindo para uma crise institucional profunda, que só foi evitada agora porque insistiram na tecla de que o mal de Tancredo é passageiro, com recuperação plena em questão de dias. Ora, e se isso não acontecer, ou se uma nova situação parecida se  criar em futuro próximo? É evidente que Sarney na presidência por qualquer período longo representa uma violação tão grande da correlação de forças no interior da própria Aliança Democrática, que estará aberto o caminho da crise.”[17]
            Após a morte de Tancredo e a posse de José Sarney, a Direção Nacional tentava manter acesa a chama da mobilização popular, alterando o eixo das lutas sociais e políticas para a conquista de reivindicações sindicais e populares como:
Das diretas já à trimestralidade já.
O povo está de novo nas ruas. É o mesmo povo que lutou pelas diretas já e ficou com as indiretas. Que apoiou Tancredo com mudanças já e ficou sem Tancredo e sem as mudanças. Agora o povo cobra essas mudanças.(...)
Fracassou a tentativa da Aliança Democrática de transformar o luto pela morte de Tancredo em ato de contrição e fé na Nova República. As esperanças populares na Nova República foram enterradas com o corpo de Tancredo.(...)
Diante da explosão dos movimentos reivindicatórios, a Nova República responde ora com promessas ora com o cacete.(...)”[18]
“PT mostra o caminho: Reforma Agrária Já!
(...) O governo não resistiu às pressões dos latifundiários e adiou a Reforma Agrária. (...)
O PT desde o início apoiou os planos da Reforma Agrária, mesmo considerando-os tímidos, por reconhecer que representam um avanço, e que estão sendo propostos por um setor progressista do governo. Mas o PT não ficou só nas palavras e nem descuidou da mobilização popular. Em Santa Catarina, quase 1.500 famílias conseguiram arrancar um acordo com os governo estadual e federal, que lhes dará posse de terra para viver e trabalhar. Um acordo pioneiro, que mostra que só a mobilização popular conseguirá forçar a Reforma Agrária. O governo proibiu que o nome da CUT constasse no acordo. Mas foi a presença da CUT, dos líderes dos trabalhadores rurais ligados à CUT, que permitiu a vitória do Oeste catarinense.”[19]
            A vitória da “Aliança Democrática” no Colégio Eleitoral, na interpretação dos dirigentes petistas, representara a frustração de anseios populares. Todavia, mesmo que a correlação de forças não fosse favorável, o PT, a CUT e os movimentos sociais, como o MST, recolocariam na “ordem do dia” o atendimento de demandas como a reforma agrária, o fim da política salarial, direito de greve, e tantas outras. O PT encabeçaria a organização e mobilização popular, participando das principais lutas sociais no período, com a crescente ocupação de espaços institucionais.
            Mas não há dúvida de que, ao depositar todas as fichas da adoção da eleição direta para a presidência da República apenas na aprovação da Emenda Dante de Oliveira pelo Congresso Nacional, tanto o PT, a CUT, como os movimentos sociais que organizaram as "Diretas Já!" foram derrotados. A derrota da emenda "Dante de Oliveira" cristalizava um novo realinhamento de tendências, com a cisão interna do PDS e a criação da "Frente Liberal". Formalizava-se o pacto entre a dissidência liberal-conservadora do regime autoritário e os setores moderados da oposição, através da "Aliança Democrática" (PMDB-PFL), personificada na chapa Tancredo-Sarney. A vitória da "estratégia de transição pelo alto" levaria à instalação da "Nova República" via eleição indireta, "como herdeira da parcela de continuísmo e conservadorismo que constitui o espólio do regime autoritário". Esse desfecho seria uma variante da alternativa preconizada por Golbery, atingindo o seu objetivo final, com a liberação das Forças Armadas do desgaste com o envolvimento direto com o poder, mas garantindo o papel de "arbítrio" das decisões políticas. O Governo de José Sarney - ilegal e ilegítimo, pois assumiria sem que o presidente eleito, mesmo que no Colégio Eleitoral, tivesse tomado posse - representaria o governo de transição no Brasil. Uma transição conservadora, o momento final - enfim! - da ditadura no Brasil. Mas isso já é outra história.






[1] PT, Boletim Nacional, no. 3, 20 de dezembro de 1983, p. 3.
[2] PT, Boletim Nacional, no 4, 25 de janeiro de 1983, p. 2. Ver também os no. 5, 6, e seguintes.
[3] A quarta proposta não foi localizada.
[4] PT, Boletim Nacional, no. 6, 1 de abril de 1984, suplemento especial, p. 1.
[5] Idem.
[6] Idem, p. 2.
[7] Idem, p. 3.
[8] O PT e o momento político – manifesto do Diretório Nacional (21/10/84), Boletim Nacional, Órgão da Executiva Nacional, no. 8, novembro de 1984, p. 2.
[9] Idem, p. 2.
[10] Idem, p. 2-3.
[11] Idem, p. 3.
[12] Rui Falcão, Proposta 1, “Manter-se fiel às origens ou diluir-se”, in: PT, Boletim Nacional, Órgão da Executiva Nacional, no. 8, p.3.
[13] Marco Aurélio Ribeiro e Airton Soares (Dep. Fed. SP), Proposta 2, “Ir ao Colégio para votar contra o fascismo”, in: idem, p. 4.
[14] Paul Singer, Proposta 3, “Negociar um acordo programático”, in: PT, Boletim Nacional, Órgão da Executiva Nacional, no. 8, p.4.
[15] PT, Boletim Nacional, no. 9, março de 1985. Deve-se aproveitar para destacar que não houve publicação do Boletim Nacional no processo da realização de eleições indiretas para presidente, nem do debate e expulsão dos deputados petistas que participaram do Colégio Eleitoral.
[16] Francisco Weffort, “Eleições Sim, Greves Também”, in: PT, Boletim Nacional, no. 9, março de 1985.
[17] : PT, Boletim Nacional, no. 9, março de 1985. O texto deve ter sido escrito por Bernardo Kucinski, que respondia pela redação do Boletim.
[18] : PT, Boletim Nacional, no. 10, junho de 1985, 1ª página.
[19] : PT, Boletim Nacional, no. 11, julho de 1985, 1ª página.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

A Copa já era!

JORGE LUIZ SOUTO MAIOR*

O presente texto tem o propósito de apresentar onze argumentos, do goleiro ao ponta-esquerda, para demonstrar que a Copa já era!
Ou seja, que já não terá nenhum valor para a sociedade brasileira e, em especial para a classe trabalhadora, restando-nos ser diligentes para que os danos gerados não se arrastem para o período posterior à Copa.

1. A perda do sentido humano
O debate entre os que defendem a causa “não vai ter copa” e os que afirmam “vai ter copa” está superado. Afinal, haja o que houver, o evento não vai acontecer, ao menos no sentido originariamente imaginado, como instrumento apto a gerar lucros e dividendos políticos “limpinhos”, como se costuma dizer, pois não é mais possível apagar os efeitos deletérios que a Copa já produziu para a classe trabalhadora brasileira. É certo, por exemplo, que para José Afonso de Oliveira Rodrigues, Raimundo Nonato Lima Costa, Fábio Luiz Pereira, Ronaldo Oliveira dos Santos, Marcleudo de Melo Ferreira, José Antônio do Nascimento, Antônio José Pitta Martins e Fabio Hamilton da Cruz, mortos nas obras dos estádios, já não vai ter Copa!
Aliás, a Copa já não tem o menor valor para mais de 8.350 famílias que foram removidas de suas casas no Rio de Janeiro, em procedimento que, como adverte o jornalista Juca Kfouri, no documentário, A Caminho da Copa, de Carolina Caffé e Florence Rodrigues, “lembram práticas nazistas de casas que são marcadas num dia para serem demolidas no dia seguinte, gente passando com tratores por cima das casas”. Essas práticas, segundo relatos dos moradores, expressos no mesmo documentário, incluíram invasões nas residências, para medir, pichar e tirar fotos, estabelecendo uma lógica de pressão a fim de que moradores assinassem laudos que atestavam que a casa estava em área de risco, sob o argumento de que na ausência de assinatura nada receberiam de indenização, o que foi completado com o uso da Polícia para reprimir, com extrema violência, os atos de resistência legítima organizados pelos moradores, colimando com demolições que se realizaram, inclusive, com pessoas ainda dentro das casas. As imagens do documentário mencionado são de fazer chorar e de causar indignação, revolta e repúdio, como o são também as imagens da violência utilizada para a desocupação de imóvel da VIVO na zona norte do Rio de Janeiro, ocorrida no dia 11 de abril de 2014, onde se encontravam 5.000 pessoas. Lembre-se que as remoções para a Copa ocorreram também em Campo Grande, Curitiba, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Manaus, São Paulo e Fortaleza, atingindo, segundo os Comitês Populares da Copa, cerca de 170 mil famílias em todo o Brasil.
A Copa já não tem sentido para o Brasil, como nação, visto que embora sejam gastos cerca de R$ 30 bilhões para o montante total das obras, sendo 85% vindos dos cofres públicos, a forma como se organizou – ou não se organizou – a Copa acabou abalando a própria imagem do Brasil. Ou seja, mesmo se pensarmos o evento do ponto de vista econômico e ainda que, imediatamente, se possa chegar a algum resultado financeiro positivo, considerando o que se gastou e o dinheiro que venha a ser atraído para o mercado nacional, é fácil projetar um balanço negativo em razão da quebra de confiabilidade.
Se o Brasil queria se mostrar, como de fato não é, para mais de 2 bilhões de telespectadores, pode estar certo de que a estratégia já não deu certo.
A propósito, a própria FIFA, a quem se concederam benefícios inéditos na história das Copas, tem difundido pelo mundo uma imagem extremamente negativa do Brasil, que até sequer corresponde à nossa realidade, pois faz parecer que o Brasil é uma terra de gente preguiçosa e descomprometida, quando se sabe que o Brasil, de fato, é um país composto por uma classe trabalhadora extremamente sofrida e dedicada e onde se produz uma inteligência extremamente relevante em todos os campos do conhecimento, mas que, enfim, serve para demonstrar que maquiar os nossos problemas sociais e econômicos não terá sido uma boa estratégia.
2. Ausência de beneficio econômico
Mesmo que entre perdas e ganhos o saldo econômico seja positivo, há de se indagar qual o preço pago pela população brasileira, vez que restará a esta conviver por muitos anos com o verdadeiro legado da Copa: alguns estádios fantasmas e obras inacabadas, nos próprios estádios e em aeroportos e avenidas, além da indignação de saber que os grandes estádios e as obras em aeroportos custaram milhões aos cofres públicos, mas que, de fato, pouca serventia terão para a maior parte da classe operária, que raramente viaja de avião e que tem sido afastada das partidas de futebol, em razão do processo notório de elitização incrementado neste esporte.
Oportuno frisar que o dinheiro público utilizado origina-se da riqueza produzida pela classe trabalhadora, vez que toda riqueza provém do trabalho e ainda que se diga que não houve uma transferência do dinheiro público para o implemento de uma atividade privada, vez que tudo está na base de empréstimos, não se pode deixar de reconhecer que foram empréstimos com prazos e juros bastante generosos, baseados na previsibilidade de ganhos paralelos com o evento, ganhos que, no entanto, já se demonstram bastante questionáveis.
No caso do estádio Mané Garrincha, em Brasília, por exemplo, com custo final estimado em R$1,9 bilhões, levando-se em consideração o resultado operacional com jogos e eventos obtidos em um ano após a conclusão da obra, qual seja, R$1.137 milhões, serão precisos 1.167 anos para recuperar o que se gastou, o que é um absurdo do tamanho do estádio, ainda que o Ministro do Esporte, Aldo Rebelo, e o secretário executivo da pasta, Luis Fernandes, tenham considerado o resultado, respectivamente, “um êxito” e “um exemplo contra o derrotismo”.
O problema aumenta, gerando indignação, quando se lembra que não se tem visto historicamente no Brasil – desde sempre – a mesma disposição de investir dinheiro público em valores ligados aos direitos sociais, tais como educação pública, saúde pública, moradias, creches e transporte.
O que se sabe com certeza é que a FIFA, que não precisa se preocupar com nenhum efeito social e econômico correlato da Copa, obterá um enorme lucro com o evento. “Uma projeção feita pela BDO, empresa de auditoria e consultoria especializada em análises econômicas, financeiras e mercadológicas, aponta que a Copa do Mundo de 2014 no Brasil vai render para a Fifa a maior arrecadação de sua história: nada menos do que US$ 5 bilhões entrarão nos cofres da entidade (cerca de R$ 10 bilhões).”
3. O prejuízo para o governo
O governo brasileiro, que tenta administrar todos os prejuízos do evento, vê-se obrigado, pelo compromisso assumido por ocasião da candidatura, a conferir para a FIFA garantias, que ferem a Constituição Federal e que, por consequência, estabelecem um autêntico Estado de exceção, para que o lucro almejado pela FIFA não corra risco de diminuição, entregando-lhe, além dos estádios, que a FIFA utilizará gratuitamente:
a) a criação de um “local oficial de competição”, que abrange o perímetro de 2 km em volta do estádio, no qual será reservada à FIFA e seus parceiros, a comercialização exclusiva, com proibição do livre comércio, inclusive de estabelecimentos já existentes no tal, caso seu comércio se relacione de alguma forma ao evento;
b) a institucionalização do trabalho voluntário, para serviços ligados a atividade econômica (estima-se que cerca de 33 mil pessoas terão seu trabalho explorado gratuitamente, sem as condições determinadas por lei, durante o período da Copa no Brasil);
c) o permissivo, conferido pela Recomendação n. 3/2013, do CNJ, da exploração do trabalho infantil, em atividades ligadas aos jogos, incluindo a de gandula, o que foi proibido, ainda que com bastante atraso, em torneios organizados pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol), desde 2004, seguindo a previsão constitucional e o Estatuto da Criança e da Juventude (ECA);
d) a liberdade de atuar no mercado, sem qualquer intervenção do Estado, podendo a FIFA fixar o preço dos ingressos como bem lhe aprouver (art. 25, Lei Geral da Copa);
e) a eliminação do direito à meia-entrada, pois a Lei Geral da Copa permitiu à FIFA escalonar preços em 4 categorias, que serão diferenciadas, por certo, em razão do local no estádio, sendo fixada a obrigatoriedade de que se tenha na categoria 4, a mais barata (não necessariamente com preço 50% menor que a mais cara), apenas 300 mil ingressos, sem quórum mínimo para cada jogo, e apenas dentre estes é que se garantiu a meia entrada para estudantes, pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos; e participantes de programa federal de transferência de renda, que, assim, foram colocados em concorrência pelos referidos ingressos;
f) o afastamento da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, deixando-se os critérios para cancelamento, devolução e reembolso de ingressos, assim como para alocação, realocação, marcação, remarcação e cancelamento de assentos nos locais dos Eventos à definição exclusiva da FIFA, a qual poderá inclusive dispor sobre a possibilidade: de modificar datas, horários ou locais dos eventos, desde que seja concedido o direito ao reembolso do valor do ingresso ou o direito de comparecer ao evento remarcado; da venda de ingresso de forma avulsa, da venda em conjunto com pacotes turísticos ou de hospitalidade; e de estabelecimento de cláusula penal no caso de desistência da aquisição do ingresso após a confirmação de que o pedido de ingresso foi aceito ou após o pagamento do valor do ingresso, independentemente da forma ou do local da submissão do pedido ou da aquisição do Ingresso (art. 27).
4. O prejuízo para a cidadania
Para garantir mesmo que o lucro da FIFA não seja abalado, o Estado já anunciou que o evento terá o maior efetivo de policiais da história das Copas, com gasto estimado de 2 bilhões de reais, mobilizando, inclusive, as Forças Armadas, tudo isso não precisamente para proteger o cidadão contra atos de violência urbana, mas para impedir que o cidadão, vítima da violência da Copa, possa se insurgir, democraticamente, contra a sua realização.
A respeito das manifestações, vale frisar, é completamente impróprio o argumento de que como nada se falou antes, agora é tarde para os cidadãos se insurgirem. Primeiro, porque quando o compromisso foi firmado ninguém foi consultado quanto ao seu conteúdo. E, segundo, porque nenhum silêncio do povo pode ser utilizado como fundamento para justificar o abalo das instituições do Estado de Direito, vez que assim toda tirania, baseada na força e no medo, estaria legitimada. O argumento, portanto, é insustentável e muito grave, sobretudo no ano em que a sociedade brasileira se vê diante do desafio de saber toda a verdade sobre o golpe de 1964 e os 21 anos da ditatura civil-militar.
Deve-se acrescentar, com bastante relevo, que o evento festivo, composto por alguns jogos de futebol, está sendo organizado de modo a abranger toda a sociedade brasileira, impondo-lhe os mais variados sacrifícios, pois impõe uma intensa alteração da própria rotina social, atingindo a pessoas que nenhuma relação possuem com o evento ou mesmo que tenham aversão a ele.
O próprio calendário escolar foi alterado, para que não houvesse mais aulas durante a Copa, buscando, de fato, melhorar artificialmente o trânsito e facilitar o acesso aos locais dos jogos. A educação, que é preceito fundamental, que se arranje, pois, afinal, é ano da Copa! Algumas cidades, para melhor atingir esse objetivo da facilitar a circulação, mascarando os problemas do transporte, pensam, seriamente, em decretar feriados nos dias de jogo da seleção brasileira, interferindo, também, na lógica produtiva nacional.
Nos serviços públicos já se anunciaram alterações nos horários de funcionamento, de modo a não permitir coincidência com os dias de jogos do Brasil, sendo que em alguns Tribunais do Trabalho (Mato Grosso – em Cuiabá e nas cidades do interior; Rio Grande do Sul e São Paulo, com diferenças de intensidade e de datas); o funcionamento foi suspenso, gerando adiamento das audiências… Ou seja, o trabalhador, que esperou meses para ser atendido pela Justiça, verá sua audiência adiada para daqui a alguns novos meses, pois, afinal, era dia de jogo da Copa!
Somados todos esses fatores, é fácil entender que a Copa já perdeu todo o sentido para a nação brasileira. Não por outra razão, aliás, é que a aprovação para a realização da Copa no Brasil, em novembro de 2008, que era de 79% caiu, em abril de 2014, para 48%, e os que eram contrários subiram, no mesmo período, de 10% para 41%, sendo que mais da metade dos brasileiros considera que os prejuízos serão maiores que os ganhos.
5. O prejuízo para a razão
Numa leitura otimista, o diretor-geral do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo Fifa 2014, que se chama, por coincidência reveladora, Ricardo Trade (comércio, em inglês), prefere dar destaque ao fato de que 48% são a favor e apenas 41% são contra, avaliando, então, que o copo está meio cheio. Só não consegue ver que o copo está esvaziando e que, de fato, nos trens e ônibus, que transportam os trabalhadores, só se fala da Copa para expressar indignação com relação às condições do transporte, da saúde, das escolas, e da falta de creches. Sintomático, aliás, o fato de que as periferias das grandes cidades não estão pintadas para a “festa” do futebol, como estavam nas Copas anteriores e isso porque, com a Copa sendo realizada aqui, é possível ver as disparidades e perceber com maior facilidade como a retórica do legado não atinge, concretamente, a vida da classe trabalhadora.
Os tais empregos gerados são precários e inseridos, sobretudo nas obras de estádios, aeroportos e vias públicas, na lógica perversa da terceirização, sendo que muitos trabalhadores ainda serão explorados sem qualquer remuneração no mal denominado trabalho “voluntário”, referido com orgulho pelo “Senhor Comércio”.
Fato é que não será mais possível assistir a um jogo da Copa, no estádio, pela TV ou nos circos armados do “Fan Fest” e se emocionar com uma jogada ou um gol, sem lembrar do preço pago: assalto à soberania; Estado de exceção; gastos públicos; abalo da confiabilidade em razão da desorganização; violências dos despejos, dos acidentes de trabalho e da repressão policial…
Sobre o Fan Fest, ademais, é oportuno esclarecer que se trata de um “evento oficial” da Copa da FIFA, que deve ser organizado e custeado pelas cidades sedes de jogos, para que os excluídos dos estádios possam assistir aos jogos por um telão, com o acompanhamento de shows. Esse evento, organizado e pago pelo Estado (que se fará em São Paulo mediante pareceria com o setor privado, conforme Comunicado de Chamamento Público n. 01/2014/SMSP, que estabeleceu o prazo de uma semana para o oferecimento de ofertas), realizado em espaço público, atende aos interesses privados da FIFA e suas parceiras. No caso da cidade de São Paulo, por exemplo, o Decreto n. 55.010, de 9 de abril de 2014, assinado pela vice-prefeita em exercício, Nádia Campeão (em nova coincidência reveladora), que regulou o evento, transforma a área pública do Fan Fest em uma área privada, reservada, como dito no Decreto, aos fãs da Copa. Nos termos expressos no Decreto: “FAN FEST: área do Vale do Anhangabaú indicada pela cidade-sede e reconhecida pela FIFA como área de lazer exclusiva aos fãs da Copa do Mundo FIFA 2014” (inciso VIII, do art. 2º.) – grifou-se
O mesmo Decreto fixa esse local, o do Fan Fest, como área de “restrição comercial”, que são “áreas definidas pelo Poder Público Municipal com perímetros restritos no entorno de locais oficiais específicos de competição, nas quais, respeitadas as normas legais existentes, fica assegurada a exclusividade prevista no artigo 11 da Lei Federal nº 12.663, de 2012, à FIFA ou a quem ela autorizar” (inciso XIII, do art. 2º.), valendo reparar que o Decreto, artificialmente, amplia, em muito, a extensão geográfica do Vale do Anhangabaú: “FAN FEST: a partir do Largo da Memória, Rua Formosa, Viaduto do Chá, Praça Ramos de Azevedo, Rua Conselheiro Crispiniano, Rua Capitão Salomão, Praça Pedro Lessa, Largo São Bento, Rua Florêncio de Abreu, Rua Boa Vista, Rua Líbero Badaró, Praça do Patriarca, alça de retorno da Av. 23 de Maio do sentido Bairro/Centro para o sentido Centro/Bairro, Av. 23 de Maio, entre o Largo da Memória e o Viaduto do Chá, conforme Anexo II deste decreto” (inciso II, do art. 3º.), atingindo até mesmo o espaço aéreo: “Os espaços aéreos correspondentes aos perímetros descritos nos incisos I e II do “caput” deste artigo também se constituem em áreas de restrição comercial” (parágrafo único do art. 3º.).
É importante saber que ao se impedir a comercialização na área reservada a Prefeitura de São Paulo acabou interrompendo um processo de negociação, iniciado em maio de 2012, com os ambulantes que atuavam na cidade e, em especial, na região central, onde se situa o Vale do Anhangabaú, e cuja licença havia sido cassada no contexto de uma política de endurecimento muito forte quanto à fiscalização de sua atuação, que fora intensificada, exatamente, a partir de 2011, quando houve a assinatura do termo de compromisso, anunciando São Paulo como uma das cidades sedes da Copa. Em 2012, acabaram sendo canceladas todas as 5.137 licenças dos ambulantes e até hoje, mesmo após instaurado, desde 2012, um grupo de trabalho tripartite – trabalhadores, sociedade civil e prefeitura (Fórum dos Ambulantes), para a discussão do problema, nada se resolveu e, em concreto, ao editar o Chamamento Público acima citado, a Prefeitura acabou dificultando sobremaneira a pretensão dos ambulantes de terem alguma atuação comercial durante a Copa. É a Copa, na verdade, fechando postos de trabalho!
6. De novo o dinheiro
Há de se considerar que todos esses efeitos já foram produzidos e continuarão repercutindo na vida real para além da Copa, ainda que o saldo econômico desta venha a ser positivo.
E se o tema é dinheiro, há de se indagar: dinheiro para quem, cara pálida? É evidente que o benefício econômico não ficará para a classe trabalhadora e sim para quem explora o trabalho ou se vale da lógica de reprodução do capital. Para o trabalhador, o dinheiro que se direciona é o fruto do trabalho realizado, que, de fato, na lógica do modelo de sociedade capitalista, não representa, jamais, o equivalente necessário para restituir à classe trabalhadora como um todo o valor do trabalho empregado no serviço ou na obra. A lógica econômica da Copa não é outra coisa senão a intensificação do processo de acumulação de riqueza por meio da exploração do trabalho alheio, sendo que se considerarmos a utilização do denominado “trabalho voluntário”, que se realizará sem qualquer custo remuneratório, a acumulação que se autoriza é ainda maior.
O tal efeito benefício econômico, a que tanto se alude, portanto, não será, obviamente, revertido à classe trabalhadora. Esta, inclusive, será enormemente prejudicada, na medida em que o dinheiro público utilizado para financiar a atividade lucrativa de índole privada foi extraído da tributação realizada sobre a riqueza produzida pelo trabalho e que, assim, deveria ser, prioritariamente, revertida ao conjunto da classe trabalhadora para a satisfação das necessidades essenciais garantidas por preceitos constitucionais: escolas, hospitais, previdência e assistência social, creches e transporte, por exemplo. É completamente ilógico dizer, como disse o diretor-geral do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo Fifa 2014, no texto mencionado, que se está usando o dinheiro público para incentivar uma produção privada com o objetivo de, ao final, tributar essa produção e devolver o dinheiro aos cofres públicos.
O argumento seria apenas ilógico não fosse, também, digamos assim, carregado de alguns equívocos, o que o torna, portanto, muito mais grave. Ora, como adverte Maurício Alvarez da Silva, pelos termos da Lei Geral da Copa, Lei n. 12.350/10, “foi concedida à Fifa e sua subsidiária no Brasil, em relação aos fatos geradores decorrentes das atividades próprias e diretamente vinculadas à organização ou realização dos Eventos, isenção de praticamente todos os tributos federais” .
Além disso, em 17 de maio de 2013, o governo federal publicou no “Diário Oficial da União decreto que concede isenção de tributos federais nas importações destinadas à Copa das Confederações neste ano e à Copa do Mundo de 2014. Entre os produtos incluídos na isenção estão alimentos, suprimentos médicos, combustível, materiais de escritório, troféus. O benefício abrange Imposto sobre Produtos Industrializados incidente na importação, Imposto de Importação, PIS/Pasep-Importação, Cofins-Importação, Taxa de utilização do Siscomex, Taxa de utilização do Mercante, Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante e Cide-combustíveis”.
Em concreto, continuarão sendo tributados apenas as empresas nacionais, que não estejam integradas ao rol das apaziguadas da FIFA, sofrendo, ainda, com a isenção concedida às importadoras, os trabalhadores e os consumidores, sendo que o valor circulado nesta seara é ínfimo se considerarmos aquele, sem tributação, destinado à FIFA e suas parceiras e às importadoras.
7. De novo os ataques aos trabalhadores
Quando os trabalhadores, saindo da invisibilidade, se apresentam no cenário político e econômico e se expressam no sentido de que planejam uma organização coletiva para tentarem diminuir o prejuízo, buscando, por meio de reivindicações grevistas, atrair para si uma parte maior do capital posto em circulação em função da Copa, logo algum economista de plantão vem a público com a ameaça de que tais ganhos podem resultar em demissões futuras.
Mas, essa possibilidade aventada pelos trabalhadores de se fazerem ouvir na Copa, que pode, em concreto, minimizar o prejuízo dos trabalhadores, no processo de acumulação, e do país, na evasão de riquezas, acabou provocando uma reação institucional imediata, afinal o compromisso assumido pelo Estado brasileiro foi o de permitir que a FIFA obtivesse o seu maior lucro da história. Então, a Justiça do Trabalho se adiantou e divulgou que vai estabelecer um sistema de plantão para julgar, com a máxima celeridade (de um dia para o outro), as greves que ocorram durante a Copa, com o pressuposto já anunciado de que “as greves têm custo para os trabalhadores, empregadores e população”, sendo certo que a Copa não pode ser usada para “expor o país a uma humilhação internacional, como no Carnaval, quando houve greve de garis”.
Pouco importa o quanto a Justiça do Trabalho, historicamente, demora para dar respostas aos direitos dos trabalhadores, no que se refere às diversas formas de violências de que são vítimas em razão das práticas de algumas empresas no que tange à falta de registro, ao não pagamento de verbas rescisórias, ao não pagamento de horas extras, ao não pagamento de indenizações por acidentes do trabalho etc. Mesmo que já tendo melhorado sobremaneira na defesa dos interesses dos trabalhadores, transmite ainda a ideia central de que o que importa é ser célere quando isso interessa ao modelo econômico, que se vale da exploração do trabalho para reproduzir o capital.
A iniciativa repressiva da Justiça, ademais, foi aplaudia, rapidamente, por editorial do jornal Folha de S. Paulo, o qual, inclusive, em declaração, no mínimo, infeliz, chamou os trabalhadores de oportunistas:
É uma iniciativa elogiável para evitar o excesso de oportunismo sindical, que não hesita em prejudicar o público e ameaçar o principal evento do ano no país.
Ou seja, todo mundo pode ganhar, menos os trabalhadores. Parodiando a máxima penal, é como se lhes fosse dito: “tudo que vocês ganharem pode ser utilizado contra vocês mesmos…”
Como foram as condições de trabalho nas obras? Quantos trabalhadores não receberam ainda os seus direitos por serviços que prestaram para a realização da Copa? Segundo preconizado pelo viés dessa preocupação, nada disso vem ao caso… Na visão dos que só veem imperativo obrigacional de realizar a Copa, como questão de honra, custe o que custar, o que importa é que o “público” receba o proveito dos serviços dos trabalhadores e se estes não ganham salário digno ou se trabalham em condições indignas não há como trazer à tona, para não impedir a realização do evento e para não abalar a imagem no Brasil lá fora.
Mas, concretamente, que situação pode constranger mais a figura do Brasil no exterior? O Brasil que faz greves? Ou o Brasil em que os trabalhadores são submetidos a condições subumanas de trabalho e que não permite que esses mesmos trabalhadores, em geral invisíveis aos olhos das instituições brasileiras, se insurjam contra essa situação, tendo que aproveitar o momento de um grande evento para, enfim, ganhar visibilidade, inclusive, internacional?
Na verdade, a humilhação internacional, a qual não se quer submeter o Brasil, é a de que o mundo saiba como o capitalismo aqui se desenvolve, ainda marcado pelos resquícios culturais de quase 400 anos de escravidão e sem sequer os limites concretos da eficácia dos Direitos Humanos e dos direitos sociais, promovendo, em concreto, uma das sociedades mais injustas da terra.
8. O perverso legado das condições de trabalho na Copa
Do ponto de vista da realidade, é preciso consignar que a pressa na execução das obras ainda tem aumentado a espoliação da classe trabalhadora com elevação das jornadas de trabalho, cuja retribuição, ainda que paga, nunca é suficiente para atingir o nível da equivalência, ainda mais quando são implementadas fórmulas jurídicas fugidias do efetivo pagamento (banco de horas, compensações etc.). O trabalho em jornadas extraordinárias, ademais, gera um desgaste físico e mental do trabalhador que não é computado e não se compensa por pagamento.
Além dos acidentes do trabalho citados inicialmente, portanto, é importante adicionar ao legado da Copa para a classe trabalhadora as más condições de trabalho, caracterizadas pela elevação das jornadas de trabalho, pelo aumento do ritmo do trabalho e da pressão pela celeridade.
O relato de alguns fatos, extraídos do noticiário jornalístico, auxilia na visualização desse contexto de supressão de direitos dos trabalhadores no período de preparação para a Copa.
Em setembro de 2013, 111 migrantes, vindos do Maranhão, Sergipe, Bahia e Pernambuco foram encontrados em condições análogas à de escravos na obra de ampliação do aeroporto de Guarulhos/SP, o mais movimentado da América Latina, sob a responsabilidade da empresa OAS, que além de ser uma das maiores construtoras do Brasil, é também a terceira empresa que mais faz doações a candidatos de cargos políticos, segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo, sendo uma das quatro empresas que formam o consórcio Invepar que, junto com a Airports Company South Africa, detêm 51% da sociedade com a Infraero para a administração do Aeroporto Internacional de Guarulhos através da GRU Airport e que para as obras de ampliação do aeroporto, onde foi flagrado trabalho escravo, obteve do BNDES um empréstimo-ponte de R$1,2 bilhões.
E a OAS, evidentemente, declarou que “vem apurando e tomando todas as providências necessárias para atender às solicitações” do Ministério do Trabalho e Emprego, negando que as vítimas fossem suas empregadas ou que tivesse tido qualquer “participação no incidente relatado” .
Até abril de 2012, conforme reportagem de Vinícius Segalla, oito dos doze estádios da Copa já haviam enfrentado greves, atingindo 92 dias de paralisação, sendo o recorde do Maracanã, no Rio de Janeiro, com 24 dias. As reivindicações foram variadas, indo desde questões ligadas à remuneração até o desrespeito de direitos como pagamento de horas extras e fornecimento de planos de saúde. Segundo a reportagem, “Em uma das quatro paralisações já ocorridas em Pernambuco, no início de novembro do ano passado, o motivo foi a forma como a Odebrecht lidou com as reivindicações dos trabalhadores. É que a empreiteira demitiu dois funcionários da arena que eram membros da Cipa (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) porque eles teriam incitado os trabalhadores a fazer greve. A demissão dos operários, junto com denúncias de assédio moral supostamente praticados pelo responsável pela segurança do canteiro, levou os funcionários a decretar greve.”
Também nos termos da reportagem, “a empresa explicou ao UOL Esporte que ‘Os dois empregados membros da Cipa foram demitidos por justa causa, por cometimento de flagrante ato de indisciplina, quando, no último dia 31 de outubro, instigaram os colegas a paralisarem a obra da Arena da Copa, sem nenhuma razão plausível’.” Embora, depois, por meio de nota tenha dito que as dispensas se deram sem justa causa.
A situação, revela a mesma reportagem, foi também bastante séria na greve do Maracanã, em setembro de 2011, cuja motivação, segundo Nilson Duarte, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada (Sitraicp), teria sido o fato de que “foram servidos aos cerca de 2.000 trabalhadores da obra macarrão e feijão estragados, salada com bichos e leite fora da validade”, o que fora negado pelo Consórcio Maracanã (Odebrecht, Delta e Andrade Gutierrez), por meio de nota. O local já havia sido alvo de uma greve, um mês antes, agosto de 2011, por causa de uma explosão no canteiro que feriu um trabalhador.
Relata-se, ainda, que em Manaus (AM), na Arena Amazônia, houve paralisação de um dia, em 22 de março de 2012, porque conta do valor da cesta básica que estava sendo paga aos operários, R$ 37, enquanto que “de acordo com pesquisa do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos ), o valor da cesta básica, composta por 12 produtos, fechou o mês de março a um custo R$ 251,38 na capital amazonense”, tendo a greve se encerrado com o aumento da cesta para R$ 60, acompanhado da promessa da empresa de que iria “voltar a pagar hora extra aos sábados, o que parara de fazer três meses antes”.
Na arena de Pernambuco, no início de 2012, foi promovida a dispensa coletiva de 560 empregados, conforme destacado em reportagem de Paulo Henrique Tavares, que vale a pena reproduzir:
A sexta-feira marcou a volta aos trabalhos dos operários responsáveis pela construção da Arena Pernambuco, na cidade de São Lourenço da Mata. E como “boas-vindas”, 560 trabalhadores acabaram recebendo o comunicado de demissão. A expectativa da comissão organizadora da recente greve, que paralisou as obras do estádio por oito dias, é de que outros mil funcionários peçam a carta de dispensa até o fim da tarde.
Por considerar “abusiva e ilegal”, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT-PE) exigiu, na quinta-feira, a volta aos trabalhos dos grevistas, com penalidade de R$ 5 mil, por dia, ao sindicato da categoria, o Sintepav, em caso de descumprimento. Apesar da obrigatoriedade, a ideia dos remanescentes nas obras da Arena Pernambuco é praticar – como os próprios denominam – uma “operação tartaruga”.
“Eu vim preparado para ser demitido. Como não fui, a maneira que encontrei para ajudar meus companheiros é trabalhar de maneira lenta. Cada prego desta Arena irá demorar pelo menos um dia, para ser colocado”, disse um trabalhador, que preferiu não ser identificado. “Eu não tenho prazo para terminar a obra. Quem tem prazo é o governo.”
Antes das demissões, as obras para a Arena da Copa contavam com 2.437 trabalhadores. Já contando com as saídas desta sexta-feira, cerca de 250 novos operários se apresentaram para o trabalho, em São Lourenço da Mata. “Pelo número de polícias que estão aqui na obra hoje, acredito que eles e o governador Eduardo Campo devem colocar a mão na massa para levantar o estádio até a Copa do Mundo”, falou, em tom irônico, um dos novos desempregados.
Entre as reivindicações, os trabalhadores exigiam aumento de benefícios, como cesta básica de R$ 80 para R$ 120, maior participação nos lucros e resultados (PLR), Plano de Saúde para os profissionais e ajudantes, além de abono dos dias parados e estabilidade de um ano para a comissão dos trabalhadores.
A questão pertinente às condições de trabalho chegou a tal extrema que, na Arena do Grêmio (que não está integrada aos jogos da Copa, mas se alimenta da mesma lógica), em outubro de 2011, os próprios trabalhadores pediram sua demissão, como “forma de protesto pelas condições de trabalho impostas pela empreiteira. A maioria dos trabalhadores é do Maranhão e retornará ainda hoje para seu estado natal.”
No estádio do Itaquerão, os operários disseram, em janeiro de 2014, à reportagem do UOL que estavam recebem salário “por fora” (que impede a tributação e não se integra aos demais direitos dos trabalhadores), “para trabalhar mais do que o previsto pelo acordo e evitar que a inauguração do palco de abertura da Copa do Mundo atrase ainda mais”. Segundo consta da reportagem, “Um soldador que trabalha na obra contou à reportagem que espera receber um salário quatro vezes maior do que o normal neste mês devido às horas extras irregulares que está fazendo”.
Segundo a reportagem, o acordo em questão, firmado com o aval do Ministério do Trabalho e Emprego, em 19 de dezembro de 2013, foi o de que estaria autorizado o trabalho em até duas horas extras diariamente, sendo que, anteriormente, dizem os trabalhadores, havia jornadas de até 16 horas. E, presentemente, as horas além das duas extras permitidas, que já é, por si, grave afronta à Constituição, eram trabalhadas sem marcação em cartão de ponto. “Eles [os chefes] falam para a gente: ‘Não pode atrasar’. Ainda tem muita coisa pra fazer e às vezes é melhor mesmo você trabalhar umas horinhas a mais num dia para terminar uma tarefa e já começa num ponto mais a frente no dia seguinte”, disse à reportagem um ajudante de pedreiro, de 23 anos, que, assim como os outros trabalhadores que conversaram com o UOL Esporte, pediu para não ser identificado.
Nos termos da reportagem, “Além do medo de perder o salário adicional, os funcionários da construtora disseram que foram orientados a não dar entrevistas. ‘Teve uma palestra no fim do ano para falar pra gente tomar cuidado com a imprensa, pra não ficar falando qualquer coisa porque isso só atrapalha a gente’, declara o ajudante de pedreiro.”
Como revela notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo, edição de 23/03/14 (p. D-4), foram flagrados pelos jornalistas trabalhadores executando suas tarefas sem as mínimas condições de segurança e de uma subsistência digna em obra do centro de treinamento da seleção da Alemanha no sul da Bahia (Santa Cruz Cabrália).
9. O atentado histórico à classe trabalhadora
A maior parte dos problemas vivenciados pelos trabalhadores nas obras da Copa está ligada à sua submissão ao processo de terceirização e de precarização das condições de trabalho, que acabaram sendo acatados, sem resistência institucional contundente, durante o período de preparação para a Copa, interrompendo o curso histórico que era, até então, de intensa luta pela melhoria das condições de trabalho no setor da construção civil, que é o recordista, vale destacar, em acidentes do trabalho. Essa luta, implementada pelo Ministério Público do Trabalho, tendo como ponto essencial o combate à terceirização, entendida como fator principal da precariedade que gera acidentes, já havia sido, inclusive, encampada pelo Governo Federal, em 2012, ao se integrar, em 27 de abril, ao Plano Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho.
O fato é que o evento Copa, diante da necessidade de se acelerarem as obras, acabou por jogar por terra quase toda, senão toda, a racionalidade que já havia sido produzida a respeito do assunto pertinente ao combate à terceirização no setor da construção civil, chegando-se mesmo ao cúmulo do próprio Superintendente Regional do Trabalho e emprego de São Paulo, vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego, Luiz Antônio Medeiros, um ex-sindicalista, declarar, sobre as condições de trabalho no Itaquerão, que: “Se esse estádio não fosse da Copa, os auditores teriam feito um auto de infração por trabalho precário e paralisado a obra. Estamos fazendo de conta que não vemos algumas irregularidades” (entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 03/04/14).
O período da preparação para a Copa, portanto, pode ser apontado como um atentado histórico à classe trabalhadora, que jamais será compensado pelo aludido “aumento de empregos”, até porque, como dito, tais empregos, no geral, se deram por formas precárias. Nas obras o que se viu e se vê – embora não seja visto pelo Ministério do Trabalho e Emprego – são processos de terceirização e quarteirização, sem uma oposição institucional, que, por conseqüência, produz o legado de grave retrocesso sobre o tema, que tende a se estender, perigosamente, para o período posterior à Copa.
Não se pode esquecer que quase todos os acidentes fatais acima mencionados, não por coincidência, atingiram trabalhadores terceirizados, e o Estado de exceção, acoplado ao silêncio institucional sobre as formas de exploração do trabalho (exceção feita a algumas iniciativas individualizadas de membros do Ministério Público do Trabalho) e acatado para garantir a Copa, acabaram servindo como uma luva a certas frações do setor econômico, que serão as únicas, repita-se, que verdadeiramente, se beneficiarão do evento, para desferir novo ataque aos trabalhadores, representado pela tentativa de fuga de responsabilidade da empresa responsável pela obra, transferindo-a à empresa contratada (terceirizada), que possui, como se sabe, quase sempre, irrisório suporte financeiro para arcar com os riscos econômicos envolvidos.
Sobre a morte de José Afonso de Oliveira Rodrigues, a construtora Andrade Gutierrez, responsável pela construção da arena em Manaus, defendeu-se, publicamente, dizendo que Martins trabalhava para a Martifer, empresa contratada para fazer as estruturas metálicas da fachada e da cobertura.
Quando da morte de Marcleudo de Melo Ferreira, também na obra da arena de Manaus, a Andrade Gutierrez repetiu a estratégia, expressando-se em nota:
É com pesar que a Construtora Andrade Gutierrez informa que por volta das 4h da manhã de hoje, 14/12/2013, o operário Marcleudo de Melo Ferreira, 22 anos, natural de Limoeiro do Norte – CE, funcionário de empresa subcontratada que presta serviços na montagem da cobertura da Arena da Amazônia, sofreu uma queda de uma altura de cerca de 35 metros, sendo socorrido e levado ao Pronto Socorro 28 de Agosto ainda com vida, onde não resistiu aos ferimentos e veio a falecer nesta manhã.
Reiteramos o compromisso assumido com a segurança de todos os funcionários e que uma investigação interna está sendo feita para apurar as causas do acidente. As medidas legais estão sendo tomadas em conjunto com os órgãos competentes.
Lamentamos profundamente o acidente ocorrido e estamos prestando total assistência à família do operário. Em respeito à memória do mesmo, os trabalhos deste sábado foram interrompidos. – grifou-se
Igual postura foi adotada pela Odebrecht Infraestrutura, responsável pela obra do Itaquerão, no que tange às mortes de Fábio Luiz Pereira e Ronaldo Oliveira dos Santos. Eis a nota publicada:
A Odebrecht Infraestrutura e o Sport Club Corinthians Paulista lamentam informar que no início da tarde de hoje um acidente na obra da Arena Corinthians provocou o falecimento de dois trabalhadores – Fábio Luiz Pereira, 42, motorista/operador de Munck da empresa BHM, e Ronaldo Oliveira dos Santos, 44 anos, montador da empresa Conecta. Pouco antes das 13 horas, o guindaste, que içava o último módulo da estrutura da cobertura metálica do estádio, tombou provocando a queda da peça sobre parte da área de circulação do prédio leste – atingindo parcialmente a fachada em LED. A estrutura da arquibancada não foi comprometida. Era a 38ª vez que esse tipo de procedimento realizava-se na obra e uma peça de igual proporção foi instalada há pouco mais de uma semana no setor Sul do estádio. Equipes do corpo de bombeiros estão no local. No momento, todos os esforços estão concentrados para oferecer assistência total às famílias das vítimas.
E para demonstrar que a terceirização, com a utilização da estratégia de se eximir de responsabilidade, não é privilegio da iniciativa privada, quando houve a morte de José Antônio do Nascimento na obra do Centro de Convenções do Amazonas, desenvolvida pelo Centro de Gestão Metropolitana do Município de Manaus ao lado da Arena da Amazônia, a entidade em questão expediu a seguinte nota:
funcionário da Conserge, empresa que presta serviço para a Unidade de Gestão Metropolitana, José Antônio da Silva Nascimento, de 49 anos, morreu de infarto por volta das 9h da manhã deste sábado (14 de dezembro), quando trabalhava nos serviços de limpeza e terraplanagem para o asfaltamento do Centro de Convenções da Amazônia, localizado na Avenida Pedro Teixeira.
José Antônio se sentiu mal quando subiu em uma caçamba. Uma ambulância do Samu foi acionada imediatamente para realizar o atendimento, mas o trabalhador não resistiu. A Conserge está dando toda a assistência necessária à família da vítima.
Segundo a família de José Antônio, este trabalhava sob pressão devido ao atraso na obra. “Ele trabalhava de domingo a domingo”, afirmou sua cunhada, Priscila Soares.
Por ocasião da morte de Antônio José Pitta Martins, técnico especializado em operações de guindastes de grande porte, que veio de Portugal para trabalhar na obra da Arena da Amazônia, tendo sido atingido na cabeça por uma peça de ferro que se soltou de um guindaste, novamente a fala se repete. Em nota oficial, a empresa responsável técnica pela obra, Andrade Gutierrez, destaca que o trabalhador não era seu empregado, ao mesmo tempo em que deixa claro que “o acidente não interferiu no seguimento das obras”
Eis o teor da nota:
NOTA DE ESCLARECIMENTO
A Construtora Andrade Gutierrez informa que, por volta das 8h da manhã de hoje, 07/02/2014, um técnico de guindaste de grande porte, funcionário da empresa Martifer, sofreu um acidente nas dependências do sambódromo enquanto desmontava a máquina utilizada nas obras da Arena da Amazônia. O guindaste, que auxiliava os trabalhos da Arena, já estava com as operações encerradas desde 11/01/2014 e desmobilizado em uma área externa. O operador foi socorrido pela equipe de Segurança do Trabalho e levado pelo SAMU até o hospital 28 de Agosto, onde teve seu quadro de saúde estabilizado e foi transferido para o hospital João Lúcio. O acidente não interferiu no seguimento das obras da Arena da Amazônia. – grifou-se
A empresa Martifer Construções Metalomecânica S/A, por sua vez, emitiu nota de pesar, noticiando que iria “apurar as causas do acidente”.
A última morte foi a de Fabio Hamilton da Cruz, que se deu em acidente ocorrido no Itaquerão, após uma queda de oito metros de altura. Fabio, conforme foi várias vezes frisado pelos envolvidos, com difusão na imprensa, era empregado da WDS, uma subcontratada da Fast Engenharia, que fora contratada pela AmBev, que aceitou bancar os 38 milhões de reais para colocação de arquibancadas provisórias, exigidas pela FIFA para que o estádio tivesse a capacidade de público necessária para receber a abertura da Copa do Mundo.
10. A culpabilização das vítimas
A respeito do acidente de Fábio Hamilton da Cruz, o Delegado designado para verificação do ocorrido, após ouvir alguns relatos, um dia depois do ocorrido, sem a realização de qualquer laudo técnico, já concluiu que teria havido um “excesso de confiança” da vítima.
Essa foi, ademais, outra forma de agressão aos direitos dos trabalhadores que a pressa para a realização da Copa acabou reforçando, a da culpabilização da vítima nos acidentes do trabalho.
Ora, como o próprio nome diz, o acidente do trabalho é um sinistro que se dá em função da realização de trabalho em benefício alheio, ao qual, independente da postura da vítima, fica obrigado a reparar o dano, já que o risco da atividade econômica lhe pertence (art. 2º. da CLT) e, consequentemente, é de sua responsabilidade o cuidado com o meio ambiente de trabalho.
É extremamente agressivo à inteligência humana, servindo, inclusive para fazer prolongar no tempo o sofrimento da vítima ou de seus familiares, o argumento, daquele que explora com proveito econômico o trabalho alheio, de que “vai apurar” o ocorrido, deixando transparecer no ar uma acusação, que nem sempre é velada, de que a culpa pelo acidente foi do trabalhador.
Veja-se, por exemplo, o que se passou no caso do Raimundo Nonato Lima Costa, que morreu após uma queda de 35 metros na Arena da Amazônia. Em nota de pesar pela sua morte, a responsável técnica pela obra não teve o menor receio, inclusive, de fazer uma acusação generalizada aos trabalhadores, apontando-os como responsáveis por sua própria segurança. Diz a nota.
NOTA DE PESAR
A Andrade Gutierrez lamenta a morte do operário Raimundo Nonato Lima Costa, ocorrida na noite desta quinta-feira, durante o turno noturno da obra da Arena da Amazônia. A empresa providenciou apoio imediato à família do funcionário e aguarda o resultado dos trabalhos da perícia técnica que foi iniciada pela Polícia Civil com o objetivo de apurar as causas do ocorrido.
A Andrade Gutierrez reitera o compromisso assumido com a segurança de todos os seus funcionários e informa que intensificará o trabalho de conscientização dos operários com foco na prevenção de acidentes.
Por ocasião da morte de Marcleudo de Melo Ferreira, na mesma Arena, já mencionada acima, o secretário da Copa em Manaus, Miguel Capobiango, foi além na agressão aos trabalhadores e desferiu o ataque de que as duas quedas fatais até então havidas na Arena tinham sido fruto do “relaxo” dos operários na utilização dos equipamentos de segurança. “Usar o equipamento de segurança às vezes é chato e nem todos gostam de estar usando. O operário às vezes abre mão por preguiça, então ele relaxa, e é isso que agora nós não podemos deixar”. “Infelizmente, os dois acidentes aconteceram por uma questão básica de não cuidado do trabalhador no uso correto do equipamento.”
E, sobre a morte de Fabio Hamilton da Cruz no estádio no Itaquerão, disse Andrés Sanches: “Na vida, cometemos erros e excessos. Já dirigi carro a 150 km/h. Eu não bebo. Vocês já devem ter dirigido “mamados”. Infelizmente, cometemos erros que acabam em fatalidade. Realmente, é padrão na construção civil.”
11. O retrocesso social e humano da Copa
Bem se vê que o legado maléfico para os trabalhadores brasileiros com a Copa não está apenas nas más condições de trabalho e nos conseqüentes oito acidentes fatais (não se contando aqui os vários outros acidentes do trabalho que não resultaram em óbito), o que, por si, já constitui um grande prejuízo, ainda mais se lembrarmos que as obras para a Copa da África em 2010 deixaram 02 mortes por acidente do trabalho, está também na tentativa explícita de culpar as vítimas, buscando atingir a uma impunidade que reforça a lógica de uma exploração do trabalho alheio pautada pela desconsideração da dignidade humana.
A Copa já trouxe grandes prejuízos à classe trabalhadora e é preciso impedir que se consagrem e se prolonguem, mansa e silenciosamente, para o período pós-Copa. Não tendo sido possível obstar que o Estado de exceção se instaurasse na Copa é essencial, ao menos, não permitir que ele continue produzindo efeitos.
O passo fundamental é o de recuperar a consciência, pois a porta aberta às concessões morais e éticas para atender aos interesses econômicos na realização da Copa tem deixado passar a própria dignidade, o que resta demonstrado nas manifestações que tentam justificar o injustificável apenas para não permitir qualquer abalo na “organização” do evento. Foi assim, por exemplo, que o maior atleta do século XX e melhor jogador de futebol de todos os tempos, o eterno Pelé, chegou a sugerir, mesmo que não tenha tido uma intenção malévola, que mortes em obras são fatos que acontecem, “são coisas da vida” e que se preocupava mesmo era com o atraso nas obras dos aeroportos; que o competente e carismático técnico da seleção brasileira, Luiz Felipe Scolari, ainda que sem querer ofender, afirmou que a solução para o problema do racismo no futebol é ignorar os “babacas” que cometem tais ofensas, pois puni-los não resolve nada; e que o Ministro de Minas e Energia, Edson Lobão, cogitou pedir para que os cidadãos brasileiros economizassem energia a fim de que não faltasse luz na Copa.
A postura subserviente, para satisfazer os interesses da FIFA, chegou ao ponto extremo de algumas cidades, como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Cuiabá, Natal e Fortaleza, terem atendido pedido feito, com a maior cara de pau do mundo, pelo secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, para que as cidades sedes de jogos da Copa concedessem transporte gratuito – algo que o Movimento Passe Livre está lutando, e sofrendo, para conseguir há anos –, sendo que a concessão, diversamente do que tem buscado o MPL, não se destina às pessoas necessitadas, mas aos torcedores dos jogos da Copa, que possuem condições financeiras para pagar os altos preços dos ingressos, que chegaram a ser vendidos, no paralelo, por até R$91 mil…
É de suma importância deixar claro, para a nossa compreensão e para a nossa imagem no mundo, que temos a percepção de todos esses problemas, que não o aprovamos e que estamos dispostos a enfrentá-los e superá-los.
O autêntico efeito positivo da Copa – realizada, ou não – será a constatação de que a classe trabalhadora se encontra em um estágio de consciência que lhe permite compreender que a Copa reforça e intensifica a lógica da exploração do trabalho como fonte reprodutora do capital, favorecendo ao processo de acumulação da riqueza, ao mesmo tempo em que permite a institucionalização de uma evasão oficial de divisas. A partir dessa compreensão, a classe trabalhadora não se deixará levar pela retórica de que o dinheiro dos turistas vai estimular o crescimento e gerar empregos, até porque ao se inserir na mesma lógica capitalista o dinheiro não é revertido à classe trabalhadora, à qual apenas é remunerada, sem o necessário equivalente, pelo trabalho prestado, direcionando-se, pois, a maior parcela do dinheiro em circulação em função da Copa às multinacionais aqui instaladas, especialmente no setor hoteleiro e nas companhias aéreas.
Cada trabalhador, pensando em sua atividade e em seu cotidiano de ganho e de trabalho durante a Copa, ou antes, que responda: teve ou terá algum ganho na Copa que não provenha do trabalho? Este trabalho é prestado em que condições? O eventual acréscimo de ganho está ligado ao aumento da quantidade de trabalho prestado? Que o digam, sobretudo, os jornalistas!!!
Claro que uma ou outra experiência comercial exitosa, desvinculada da dos protegidos da FIFA, pode ocorrer, mas isso por exceção. E, cumpre repetir: mesmo que no geral a Copa produza resultados econômicos satisfatórios, não se terão, com isso, justificadas as supressões da ordem jurídica constitucional, já havidas no período de preparação para o evento, e as violências sofridas por diversas pessoas, e, em especial, a classe trabalhadora, no que tange aos seus direitos sociais e humanos.
Este é o ponto fundamental: o de não permitir que a Copa e a violência institucional posta a seu serviço furtem a nossa consciência, que está sendo duramente construída, vale lembrar, após 21 anos de ditadura, seguida de 15 anos de propaganda neoliberal. A produção dessa consciência é extremamente relevante para que o drama das diversas pessoas, vitimadas pela Copa, não se arraste por muito mais tempo, sofrimento que, ademais, só aumenta quando, buscando não abalar eventual euforia da Copa, se tenta desconsiderar a sua dor, ou quando, partindo de uma perversão da realidade, argumenta-se que as pessoas que são contra a Copa (mesmo se apoiadas nos motivos acima mencionados) fazem parte de uma conspiração para “contaminar” a Copa, apontadas como adeptas da “violência”, sendo que para a ação dessas pessoas (que, de fato, carregam um dado de consciência), o que se reserva é o contra-argumento da “segurança pesada”.
O desafio está lançado. O que vai acontecer nos jogos da Copa, se a “seleção canarinho” vai se sagrar hexa campeã, ou não, não é decisivo para a história brasileira. Já o tipo de racionalidade e de reação que produzirmos diante dos fatos sociais e jurídicos extremamente graves relacionados ao evento vai, certamente, determinar qual o tipo de sociedade teremos na sequência. Boa ou ruim, a Copa acaba e a vida concreta continua e será boa ou ruim na medida da nossa capacidade de compreendê-la e de interagir com ela, pois como já disse Drummond:
Foi-se a Copa? Não faz mal.
Adeus chutes e sistemas.
A gente pode, afinal,
cuidar de nossos problemas.
Faltou inflação de pontos?
Perdura a inflação de fato.
Deixaremos de ser tontos
se chutarmos no alvo exato.
O povo, noutro torneio,
havendo tenacidade,
ganhará, rijo, e de cheio,
A Copa da Liberdade.
São Paulo, 21 de abril de 2014.
*Jorge Luiz Souto Maior é professor livre docente de direito do trabalho brasileiro na USP, Brasil desde 2001. É juiz titular na 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí desde 1998, palestrante e conferencista.